Mel de Ian McEwan

melian

 

Quem segue a obra de um escritor sabe que há uma relação proporcionalmente inversa entre as dificuldades que os livros nos causam (as dificuldades que, no fundo, constituem o prazer da leitura) e a quantidade de obras do mesmo autor que já lemos. Por outras palavras, quanto mais livros lemos de um mesmo autor, mais fácil é a compreensão, mais reconhecíveis os tiques estílisticos, mais familiares as imagens e, independentemente da extensão dos livros, mais rápida a leitura. Mas é também nesse momento que o prazer da descoberta, capaz de dar um cunho maior até a obras de transição dos autores, ao cessar, se arrisca a criar o efeito contrário: até um livro bem conseguido pode, a dada altura, parecer rotineiro. No caso, o autor deste texto está nessa fase, entre outros autores, com livros de Philip Roth, Roberto Bolaño e Haruki Murakami. E, para o caso mais importante neste momento, com Ian McEwan.

Não é que Mel, último livro de McEwan, como os restantes editado pela Gradiva,  seja um livro menor. Não o é. Mantêm-se a escrita geométrica de McEwan, com a solidez de um edificio de betão ao mesmo tempo que com a maleabilidade da plasticina e a capacidade de tratar as convulsões sócio-políticas de um tempo, no caso os mesmos tumultuosos início dos anos 70 (choque petrolífero, greves de mineiros e outros sectores importantes da sociedade inglesa, constante sobressalto devido à Guerra Fria) que viram o autor publicar os seus primeiros textos. Mas, sobretudo depois de três socos seguidos como Expiação (2001), Sábado (2005) e A Praia de Chesil (2007; deixa-se Solar, 2010, de parte por ainda não ter sido lido), este novo tomo aparenta ser uma obra algo automática, complexa na escrita mas talvez um pouco óbvia na estrutura e que nunca atinge os zénites dos três livros anteriormente referidos.

Resta então, ao leitor como ao crítico, tirar os melhores aspectos da história de Serena Frome, jovem leitora voraz que é recrutada pelo MI5 para patrocinar um escritor de nome Tom Haley no âmbito de um programa governamental secreto para apoiar escritores de ideologia útil ao Ocidente. O primeiro, a forma como é demonstrada a importância da produção de ideias na Guerra Fria, a maneira como a visualização do Outro (a URSS e a RDA) tanto quanto o tratamento artístico que as próprias sociedades ocidentais se davam a si mesmas era uma preocupação das mais altas instâncias governamentais, não tão subalternas quanto possa parecer num jogo de zonas de influência e de equilibrios de poder. O segundo, o modo como, depois de colocar no discurso da protagonista a aversão ao pós-modernismo literário e ao autores que se auto-configuram como personagens, McEwan atribui a Tom Haley não apenas dois contos que publicou na sua coleção Entre os lençóis (1978) como o coloca em editoras e rodeado de pessoas de quem se via rodeado no tempo cronológico do livro, arriscando tanto a hipótese biográfica quanto o desmentir directo de uma das suas personagens. E, em terceiro o último lugar, no já habitual capítulo final em McEwan que, mais do que atar pontas, transfigura o que atrás se leu, lança uma questão relevante: até que ponto a doutrina do equilibrio de poderes, que garantiu a sobrevivência da Humanidade na segunda metade do século XX, não é também aplicável nas relações humanas podendo, em alguns contextos, tornar-se francamente fulcral?

Por tudo isto, Mel está longe de ser uma obra-prima, dentro ou fora da obra de Ian McEwan, mas em nenhum momento o prospectivo leitor dará o seu tempo por mal empregue.

 

Texto originalmente publicado no site Letra 1

Discos 2013 (ordem alfabetica, os que mais ouvi)

Anna Calvi – One Breath 

Arctic Monkeys – AM

Bill Callahan – Dream River

Linda Martini – Turbo Lento 

Nick Cave & the Bad Seeds – Push the Sky Away 

Queens of the Stone Age – … Like Clorkwork 

Suede – Bloodsports 

The National – Trouble Will Find Me 

Wild Nothing – Nocturne

Vampire Weekend – Modern Vampires of the City 

 

Filmes 2013 (com imensas falhas)

1- La Venus a la fourrure de Roman Polanski 

2- Django Unchained  de Quentin Tarantino 

3- Beyond The Hills de Cristian Mungiu

4- Like Someone in Love de Abbas Kiarostami 

5- Before Midnight de Richard Linklater 

6- Hanna Arendt de Margaret von Trotta 

7- Zero Dark-Thirty de Kathryn Bigelow  

8- The Bling Ring de Sofia Coppola

9- Side Effects de Steven Soderbergh 

10- De rouille et d’os de Jacques Audiard

Livros de 2013 (Por ordem de prazer de leitura)

1- O Túnel de Ernesto Sabato
2- The Old Man and the Sea de Ernest Hemingway
3- The Aspern Papers de Henry James
4- Utz de Bruce Chatwin
5- Nome de Guerra de Almada Negreiros
6- O Jogador de Fiodor Dostoievski
7- Heart of Darkness de Joseph Conrad
8- O Que Diz Molero de de Dinis Machado
9- Jesus Cristo bebia cerveja de Afonso Cruz
10 – O Homem Duplicado de José Samarago ex-aequo com Quando o Diabo Reza de Mário de Carvalho

 

Radicais! Revolucionários!

Como qualquer projecto de destruição que se preze, o deste governo quer começar por baixo, pelos alicerces. Nuno Crato, inverdadeiro compulsivo, teve uma ideia que, do ponto de vista do marketing, é pouco menos que genial: o cheque-ensino. Com ele, o governo, em primeiro lugar, financia a escola privada, um sonho antigo da direita, para aqueles que dizem cobras e lagartos do Estado mas querem que este pague a educação dos seus filhos; por outro, instiga na maralha a ideia de que a educação não é um direito, mas um favor para o qual o Estado dá, por enquanto, uma ajudinha. Tudo com a novilingua do “direito de escolha”. E fantástico este novo mundo neo-liberal, onde se cobra o direito básico à educação em turmas de 35 alunos em condições cada vez piores mas onde se oferece o privilegio de não misturar os filhos com a ralé. Para esta corja, os direitos são privilégios e os privilégios direitos.

Feeling was torment

As Peyton Farquhar fell straight downward through the bridge he lost consciousness and was as one already dead. From this state he was awakened—ages later, it seemed to him—by the pain of a sharp pressure upon his throat, followed by a sense of suffocation. Keen, poignant agonies seemed to shoot from his neck downward through every fiber of his body and limbs. These pains appeared to flash along well defined lines of ramification and to beat with an inconceivably rapid periodicity. They seemed like streams of pulsating fire heating him to an intolerable temperature. As to his head, he was conscious of nothing but a feeling of fullness—of congestion. These sensations were unaccompanied by thought. The intellectual part of his nature was already effaced; he had power only to feel, and feeling was torment.

Ambrose Bierce, An Occurrence at Owl Creek Bridge

“Drug War” (2012) de Johnnie To

Drug-War-2012-Movie-Poster
Drug War é dos mais económicos e directos filmes de Johnnie To. Longe das aproximações melvillianas entre policias e bandidos de John Woo, todo o filme é de um realismo evidente, escuro e metalizado que, de vez em quando, o cineasta polvilha com pormenores esdrúxulos e geniais (a overdose forçada do protagonista, emocionante; o armazém de drogas comandado por dois irmãos surdos). Apesar de uma intriga que segue os círculos traçados entre o policia de Sun Honghei (que, num tour de force interpretativo, desempenha três papéis na mesma sequência, o seu e os de dois traficantes diametralmente opostos) e o traficante de Timmy Choi, nunca (talvez apenas a espaços em The Mission, 1999) o storytelling de To havia sido tão directo, tão conciso e tão eficaz, sem grama de gordura e sem um plano que seja a mais.
Filmado na China continental e não, como habitualmente, em Hong Kong, é duplamente influenciado por esta deslocalização. Em primeiro lugar, porque longe da malha urbana, estamos aqui junto a auto-estradas e armazéns industriais, que funcionam como uma espécie de “campo de jogo” para as batalhas das personagens. E em segundo lugar, talvez o ponto determinante, porque embora não seja desprovido de humor (os dois condutores drogados do camião são tão tolos e tão inúteis quanto os policias que os seguem), é um filme profundamente maniqueísta e perpassado por um fatalismo insidioso. É isso que explica tanto o longo banho de sangue junto à escola (o ponto alto do filme e uma das melhores sequências alguma vez filmadas por To) bem como o final sinistro: o titulo auto-evidente parece ter algo de propagandístico, defensor das leis draconianas chinesas, ao denunciar uma guerra sem quartel que decorre em território chinês e que não poupa ninguém, nem heróis nem vilões. E nas guerras… morre-se.

Dois temas quentes

1) A derrota do Benfica no Funchal era previsível. O vendaval que se lhe seguiu também. Não vou bater no ceguinho; vou antes dizer o que gostava que acontecesse agora: o presidente do Benfica vinha a público dar toda a confiança ao treinador; depois, ia ao balneário lembrar aos jogadores que a motivação deles é o gordo cheque que recebem no fim do mês; o mesmo dirigente re-instituía de imediato Oscar Cardozo e obrigava o treinador, que é um mero funcionário do clube, a reconciliar-se com o goleador; e, de caminho, retirava o ridículo apoio a Fernando Gomes ( que, desde que chegou à Liga primeiro e à Federação depois, apenas viu o seu adorado Porto perder um único jogo, cujo árbitro foi convenientemente saneado) e chamar a atenção nãoo apenas para o penalti que Jorge Sousa escamoteou como para os vergonhosos incidentes de Setúbal (ao falar destas coisa, o presidente do Benfica contrariava a impressão de que anda a dormir). Nada disto acontecerá,  e nos entretantos o que se vê é os abutres, vermelhos e de outras cores, a afiar as facas cheios de gula. O presidente encontra-se em parte incerta, como costuma acontecer quando as coisas estão difíceis.

2) Judite de Sousa teria feito bem em ter questionado internamente o valor informativo e o cabimento deontológico da entrevista com aquele indivíduo e até poderia te-lo questionado, embora com um pouco mais de educação, acerca do potencial de ofensa no seu estilo de vida em tempos de crise. Não poderia era ter feito o que fez sem que o resultado fosse este: a entrevistadora parecia uma fanática em busca de sangue e o entrevistado um jovem ponderado violentamente atacado por uma jornalista. Finalmente, duas perguntas para a pivot da TVI: i) fosse o entrevistado um Ulrich, um Belmiro ou um Dias Loureiro, teria atacado com a mesma força? ii) quem almoça com um magnata da tv, um ministro com tendências controladoras da imprensa e um dirigente desportivo de perfil sobejamente conhecido tem moral para criticar seja o que for? (quem pergunta isto não é o adepto benfiquista mas o ex-jornalista que, se se tem metido em almoçaradas, se calhar ainda o era).

Urbano

Nunca o conheci. Nunca tive aulas com ele, nunca o ouvi discorrer sobre nada nem sequer li algum livro dele. Mas lembro-me de uma vez estar a entrar na Faculdade de Letras e vê-lo, já idoso e mirrado, no átrio, com o ar sonhador de quem relembrava memórias passadas. Foi esse o único momento em que me senti realmente aluno da Faculdade de Letras, tendo acesso a um pequeno olhar sobre o tempo onde, para além do próprio, ali ensinavam Lindley Cintra e David Mourão-Ferreira (dois professores que, para levaram porrada da policia nos anos 60 por defenderem as reivindicações dos alunos), onde dois alunos começaram um grupo de teatro que perdura até hoje (foi no anfiteatro 1, onde tantas vezes tive aulas, que Luis Miguel Cintra e Jorge Silva Melo inauguraram a Cornucópia) e onde um jovem de 19 anos chamado Almeida Faria lançou Rumor Branco, um terramoto na literatura portuguesa dos anos 60. Para um sitio tão decadente, cheio de alunos com fome de fazer que lá não encontram o apoio necessário para se poderem transcender e criar algo de novo, vê-lo ali foi um pequeno olhar sobre outro tempo, onde realmente ali aconteciam coisas e cuja geração de lá saída, ao contrário daqueles como eu que trabalham em call centers, realmente acrescentou algo ao mundo para lá da Academia. Recordarei sempre esse momento, em si mesmo tão pouco importante.

A genialidade de Terry Eagleton

If I ruled the world

by Terry Eagleton / MAY 25, 2011 / 26 COMMENTS

Too many people just don’t know how to behave—or how to use words properly. Fines, jail and shoe-shining duty await them all

If I were chief executive of the cosmos, the following individuals would be abolished: Tom Cruise, Mel Gibson, Dick Cheney, Henry Kissinger, Tony Blair, Prince Andrew, Piers Morgan, the BBC’s Ben Brown for his nauseating right-wing bias in reporting a student demo, and Robert Kilroy-Silk (who seems to have abolished himself, thus saving the state the trouble and expense). Brief custodial sentences would be handed out to anyone caught using the following clichés: at the end of the day, over the moon, level playing field, no probs, going forward, pushing the envelope, in the wrong place at the wrong time, drawing a line and moving on.

A system of fines would be instituted for people who say “refute” when they mean “rebut,” “floor” when they mean “ground” and “literally” when they don’t mean literally at all. People who think the phrase “to beg the question” means “to raise the question,” or who think “fortuitous” means “felicitous,” will be issued with a police caution. The promiscuous use of the word “potentially,” as in: “He’s potentially a candidate for the job,” will get you placed under 24-hour surveillance. Prizes will be awarded to those still able to use the colon.

Kate Winslet will come to her senses and realise that she and I are soulmates. I will take her in only, however, if she promises there will be no more embarrassing displays of emotion at Oscar ceremonies. Peter Tatchell will be awarded a medal, equivalent in stature to the Victoria Cross, for his outstanding bravery.

A government inquiry would be tasked with establishing whether Donald Trump is real or fictional. Nick Griffin would be forced to become a shoeshine boy in Lagos, after a lengthy spell of latrine cleaning in Mumbai. Buckingham Palace would become a proper old people’s home, not the approximation to one it is at present.

The city of San Francisco would be moved to within 100 yards of my front door, as would Kate Winslet.

And the following categories of people would be either deported or offered as human sacrifices:

People who bump into you in the street because they are texting. People who spend an interminable amount of time getting into their aircraft seats, oblivious or indifferent to the fact that there are 75 passengers behind them, 20 of whom are out on the aircraft steps in the driving rain.

People who no longer even bother to pretend that they are not listening in on your conversation, and people at the next restaurant table who stare gormlessly at your food for several minutes when it arrives.

People who intone the words “I’m on the train” into a mobile phone the moment the train begins to move. Motorists who fail to indicate at a T-junction (that is everyone in the country except me). People who hold you up by taking their shoes off at airport security even though they are not required to do so. Everyone who for some unaccountable reason has failed to buy a copy of a remarkably cheap, extraordinarily attractive book entitled Why Marx Was Right.

Young people who are bubbly, vivacious, have loads of friends and a wonderful future ahead of them will be required to observe a curfew in the evenings, since the victims of serial killers are always described in these terms. (By some curious sociological law, miserable people never get murdered.) Anyone who is quiet, always has a polite word for his neighbours but keeps himself to himself will be taken instantly into police custody, since this is the way terrorists are invariably portrayed.

The truth is that shaggy, shabby, wild-eyed men sporting Kalashnikovs are completely harmless, rather as men who wear dirty raincoats are never sex maniacs. Terrorists are people who look just like you and me. So if you know anyone who fits this description, stop them immediately.